Sono Negro
Entrar em um
hospital com vistas a uma cirurgia é um processo “tenso” de entrega da própria
liberdade, do próprio corpo, da própria vida. Um processo em que se sabe que
coisas lhe irão acontecer, acontecer ao seu corpo, independente de sua vontade.
Por que um tenso
entre aspas? Eu diria por ser um tenso que nem todos sentem, experimentam, irão
experimentar (ainda bem); somente quem já passou por uma cirurgia, por uma
internação, e que tenha de passar de, novo, haverá de saber do que estou
falando. Área esta que eu conheço bem, muito bem, depois de inúmeras passagens
semelhantes.
Tudo começa com uma
consulta em que se fala da necessidade de procedimentos, dias que passam à aproximar a data bendita inevitável, dias
que ocorrem diferentes dos da maioria.
No filme Matrix
(maravilhoso filme) os autores apresentam realidades diferentes para a mesma
situação como que se vivêssemos em mundos diferentes apesar de todos juntos, e
é uma verdade. É como eu vejo o mundo: Cada pessoa um pensamento, uma
necessidade, um olhar. Cada uma um mundo.
Não se precisa ir
longe, nem se procurar nada. Basta observar.
Outro dia, ao estar
em um ônibus, coloquei-me de forma não convencional, de frente aos olhares.
Olhares meio que retirados (cada um na sua), feições turras não acessíveis, na
defensiva diante de um mundo que muito parece apresentar mais realidades de
percas do que de ganhos, de sabidos e espertos a quererem se aproveitar de nós
do que quererem o nosso bem (o que não deixa de ser verdade), e que por causa
disso nos incrustamos, não sorrimos (se não com os nossos), não nos expomos,
pelo contrário, vivemos a nos defender.
E o que o ônibus tem
a ver com hospital? (rsrs)
Tem a ver a partir
do momento que se observa em instantes iguais pessoas, perspectivas, mundos
diferentes.
Hoje, vendo uma
reportagem, a empregada doméstica a falar do como sai (ainda escuro) de casa e
volta (quando escuro) pra casa. Que mundo é este, o dela, a cuidar dos filhos
(de outros) enquanto os dela...? Como uma pessoa se contenta com esse mundo, o
mundo dela, será que ela é contente com ele? Quantos pensamentos, quantas
necessidades uma pessoa dessa tem? Tem sonhos? Quantas necessidades todos nós
temos? E nossos sonhos?
A tensão de uma
cirurgia (para mim) é algo como a observar pessoas divididas em grupos: Umas
são saudáveis, praticam sua liberdade sem saber o quão privilegiadas são por
serem livres e terem saúde, não sabem o que têm nas mãos. Vivem sem saber
porque vivem, às vezes, basicamente, apenas para o trabalho e obrigações, sem
saberem que são felizes por terem dádivas (vida, liberdade, saúde...), e a não
trazerem para si benesses como sorriso, alegria, gratidão, reconhecimento, vão
passando pela vida até um dia perguntarem: O que eu fiz? Quem eu fui? E minha
vida? Conheci o amor? E meus filhos que nem vi crescerem?
Em minha concepção
de mundos diferentes vejo estas pessoas e me vejo.
Vejo um homem a
experimentar sensações, momentos, experiências que muitos nunca experimentarão
(e que nem sabem o quão felizes são por isso).
Vejo um mundo dividido
em mundos onde até a luz do Sol brilha diferente para cada um; um mundo de
egoísmo para uns a quererem enganar outros (como se se dar bem às custas de
outros fosse a solução para suas vidas); um mundo de luta onde uns entregam
toda sua energia, tempo, vida, em detrimento de suas próprias vidas, por causa
do que lhes julgam necessário, afastando-se, demasiadamente, dos que amam, de
seus próprios mundos; um mundo de pessoas de bem também (ainda bem – rsrs); um
mundo de mundos.
Não há como não me
sentir diferente diante da ótica de mundo que tenho.
Não há como não
olhar paras as pessoas, observá-las, aprendê-las, aprender com elas, estar
inserido em contexto diferente, um contexto em que eu também tenho meu mundo,
um mundo sensível. Sensível de sentir,
de ver, de achar que vê de uma forma como muitos não andam vendo (talvez nunca
o façam). Um mundo como qualquer outro – cada um no seu.
Mas, nesse meu,
encontro diferenças que me chamam a atenção, muita a atenção, com vistas ao meu
melhor. Algo que, de repente, não vejo em todos os olhares onde, mesmo que
queiram o melhor para si, muitos parecem descrentes, apagados, desesperançados.
Acho que é meio diferente um ser ver como vejo e tendo passado pelo que já
passei. No mínimo diferente.
Se submeter a uma
cirurgia é algo como se entregar, se submeter (literalmente). Submeter-se à
vontade de outros, ações de outros a fazerem contigo independente de sua
vontade. Estamos lá por vontade própria, por certo, mas, independente de sua
vontade a partir do momento que você vê lhe
fazerem, você, simplesmente, tendo de aceitar.
Sua
liberdade/vontade começa a acabar, literalmente, quando ao chegar ao hospital
depois de dias de expectativa, espera, tensão. Inevitável.
Ao chegar, depois de
trâmites, convidam-no a entregar-lhes (isso mesmo), em entregar-lhes seu braço
direito. Colocar aquela pulseira é o primeiro passo para a perda de sua
liberdade/autonomia.
A partir daquele
momento o domínio de si mesmo já não é mais seu. Seus momentos próximos são uma
sucessão de ordens, uma sucessão de respostas suas a uma sucessão de comandos
com os quais você nem sempre concorda, mas, que tem de aceitar acreditando
terem sidos pensados e determinados por autoridades, que preferimos pensar,
sabem o que fazem.
Desta vez, neste meu
momento de vida, momento de conversas e palavras, quero deixar aqui, agora,
esta minha impressão, experiência, algo de repente à reflexão, ao apresentar de
uma visão/realidade com vistas, assim como tudo por aqui, enriquecimento de
nossas próprias realidades, sempre com vistas ao nosso melhor.
Um pensamento que me
ocorreu enquanto internado, sendo tratado, foi quanto ao quanto é bom sermos
bem tratados, termos por nós especialistas, procedimentos, ações a quererem o
nosso melhor, a nossa saúde, muito bom mesmo. Nessa hora um misto de felicidade
e realidade onde, como sabemos, nem todos têm suas necessidades atendidas a
contento sempre, infelizmente. Um misto de agradecimento ao mesmo tempo de
tristeza diante de uma realidade em que, como sabemos, muitos morrem sem as
devidas assistências. Novamente a questão quanto a realidade de cada um, o como
cada um pode estar feliz ou não em seu mundo, o quanto muitos nunca terão suas
necessidades, devidamente, atendidas, e o como, de repente, uma pessoa chegará
ao final de sua jornada olhando para trás satisfeito ou não com o que foi, com
o que lhes foi a vida. O fato é que fiquei muito feliz julgando-me
assistenciado, sendo tratado como, no mínimo, todos deveríamos ser: com
dignidade.
A sequência da
pulseira no braço é a internação, a entrega de suas próprias roupas, vestir
camisola, ser recebido no centro cirúrgico, havendo sido transportado em cima
de uma maca.
Nessa hora, ainda
são (ainda lúcido), trânsito de maca e carrinho da faxina; olhando para trás
enquanto carregam-me, vejo uma quase batida (rsrs). Como no trânsito onde às
vezes freamos e o de trás nem sempre consegue parar (rsrs), meus pés descalços
quase como pára-choques traseiros. Achei engraçado.
Nessa hora, um dos
poucos momentos de humanidade. Aqui a primeira crítica: Não por sermos
profissionais que devemos ser não humanos. Eu mesmo trabalho com papéis, mas, há
muito percebi que o papéis que trato são vida. São vidas diversas querendo ser
atendidas em suas necessidades. Necessidades que me chegam às mãos para que eu
seja solução, e não entrave, reclamação, mal-grado.
Não acho, não creio
que ambientes, trabalhos, “correrias” possam ser tais que não caibam respeito,
educação, consideração, boa-vontade, sorriso. Não creio mesmo.
Um hospital, por si,
já é um mundo frio. Um mundo de sofrimento e expectativa, de obrigação por quem
se propõe a fazer (e nem sempre faz ou consegue fazer) o melhor, um mundo de
esperança (o paciente) que não por outro motivo já tem esse nome, já tem de ser
paciente. Paciente que quer cura, que debilitado, assustado, muitas vezes
sentir-se-ia melhor se mais, humanamente, tratado.
Em minha opinião,
temos de olhar sempre além, procurar ver em que estamos errando e procuramos fazer,
ser sempre o melhor, não só por nós, mas, também em prol dos outros. E isso é
uma constante, é uma premissa, uma forma de ver, de acontecer nas vidas que de
nós, de alguma forma, precisam e por quem, para quem procuremos ser exemplos a
ser perpetuados, reproduzidos, até copiados em busca de um sempre melhor mundo,
de uma sempre melhor realidade para todos nós.
Deixar de fazer o
bem, deixar de fazer o melhor possível em prol de outrem é perder uma chance de
um sorriso, de uma melhora de vida, é deixar de ser o que Ele quer que sejamos.
Não concordo com o descontar em outros o que acho que devo descontar, o que não
fizeram por mim..., não concordo.
Ainda mais quanto à
área de humanas (hospitais, vidas, atendentes, médicos, professores..., etc).
Vejo empáfia em pessoas (especialistas) por terem títulos, parecendo
julgarem-se diferentes, especiais. Concordo com isso não.
Chegada ao centro
cirúrgico (um dos raros momentos de descontração), a enfermeira que veio me
receber e me ajudar a passar de uma maca para outra elogia o “meu vestido”
(rsrs). Diz que fiquei bem nele.
- Bonito e
confortável (digo eu – rsrs). Tô pensando até em copiá-lo e me vestir no
dia-a-dia desse jeito. (rsrs) – Todos riem.
O centro cirúrgico é
um mundo.
Paredes beges como
que a querer não perpetuar o branco frio do teto, como que a querer trazer (sem
sucesso) um pouco leveza, de alegria ao ambiente.
Pessoas em macas,
umas dos lados das outras, como carros estacionados. Pessoas de todos os jeitos
(novas, de idade, magras, de cor, crianças...), mas, todas com uma única
característica em comum: todas caladas.
Um calado sepulcral.
Um calado triste e, no meu caso, tenso.
Tenso, eu diria,
mais que para muitos ali, pois muitos ali não sabiam o que lhes esperava. Eu
sabia.
Ao meu lado um
rapizinho (onze anos talvez). Vi-me nele.
Vi minha empreitada
nele. Minha vida de luta em busca de minha cura.
O que será que ele
estava fazendo, de que iria ser operado? Deu vontade de perguntar para a mãe (a
única acompanhante com permissão de ficar ali).
Nada perguntei. No
íntimo a vontade de que ele tivesse sucesso, tivesse uma vida de saúde e
progresso, e que fosse aquela a última vez dele por aquele tipo de ambiente.
São oito da manhã.
Dessa vez eu sabia,
eu querer iria memorizar o máximo de tudo.
Tinha um projeto.
Tinha a vontade de escrever e deixar minha impressão aqui.
São oito da manhã,
depois de ter chegado à 6:40 (conforme ordenado), depois de se haverem passados
alguns meses da segunda e última cirurgia desse ano que ainda terá mais umas duas
ou três. São oito da manhã depois de dias de tensão e tristeza por ter de
passar mais uma vez por isso, por saber que irei sofrer, por saber de ter de me
expor a situações que eu não gostaria de me expor.
São oito da manhã e
eu, um paciente profissional, mais uma vez em um centro cirúrgico. Meio chato
isso. Paciência.
Paciência e Fé.
Fé em um mundo cada
vez melhor, em humanos cada vez mais humanos, em minha saúde para que ela se
estabilize e eu tenha uma vida com o menos sofrimento possível.
Fé. Eis a questão,
eis a palavra. Senão nem sei.
Não sei mesmo.
O tempo que se segue
até a cirurgia (começaria às 09:20) são os mais difíceis. Coração na boca,
tempo a passar, pessoas (e “meu médico”) a passarem como se não nos enxergassem,
como se não existíssemos. Nenhuma palavra de simpatia, por educação, para
diminuir nossa aflição, para amenizar nossa angústia.
Um mundo de pessoas
azuis. Homens e mulheres azuis de um lado para o outro a conversarem entre si e
a ignorar-nos, apenas se chegando a nós quando chegada a nossa vez, a levar-nos
um a um para um destino a nós não sabido, esperado, mas, não sabido.
Um a um nós nos
vamos, o estacionamento (rsrs) se esvazia.
Meu nervosismo a
revezar agora com uma certa vontade de uma certa sonolência, de um cochilo.
Como seria bom não ver esse momento.
Como seria bom
dormir e só acordar depois de tudo.
Aqui uma segunda
crítica: Que não nos ignorassem tanto, não nos deixassem tanto ali, assim, a
esperar; que se imbuíssem de nosso nervosismo e procurassem ver se da
necessidade de algo calmante para quem precisasse (eu).
Nessa hora um ar de
graça.
A morena que me
recebeu é das únicas com desenhos de flores. Ao contrário das da maioria
(branca) a touca dela é vermelha; um timbre de alegria, de cor, de vida em um
meio de sem gracices.
Chega minha vez.
- Jeff?
Levanto a mão
concordando e... me levam.
Novo ambiente, nova
maca (ou melhor, dessa vez uma cama). Uma cama estreita embaixo de um enorme
prato luminoso.
Nessa hora é que
minha vontade já não tem importância mesmo.
Um a me ajeitar na
cama, outro a amarrar meu braço direito, outro agarrar-me o esquerdo.
Colocam-me em forma de cruz (sinto-me, literalmente, crucificado).
- Abro a blusa dele
ou deixo? – Pergunta a mesma morena de touca vermelha que me recebera e
brincara com meu “vestido”.
- Abre.
Ela abre e, como
para descontrair, comenta:
- É o Tony Ramos!! –
Acaricia-me o peito peludo a exclamar:
- Maravilhoso!
Todos riem, eu sorrio,
ela pergunta:
- Não depilas?
- Nem que eu morra
só (rsrs). Todos riem.
- O que faço?
Pergunta ela com a mão em meu peito.
- Não tira a mão daí
(rsrs) – respondo.
Todos riem enquanto
uns falam de um clima de romance surgido (rsrs).
Ela completa:
- Morena bonita,
carinhosa, e flamenguista. (rsrs)
- Então é comigo
mesmo. Respondo brincando (sou flamenguista).
Todos riem falando
do futuro provável, fantasioso, casamento. (rsrs)
Logo, a realidade.
Alguém a espetar-me
o braço esquerdo como que a trazer-me para a realidade. Uma realidade onde eu
não queria estar.
O soro gelado,
aberto no máximo, a invadir-me parecendo congelar-me de dentro pra fora. Em
meu pensamento o pedido desesperado:
- Diminuam logo
isso, por favor.
Alguém ouviu, graças
a Deus, alguém diminui o gotejamento e o coração parece, inutilmente, querer
voltar ao normal.
Eu criticaria também
esse momento; por mais profissionais que todos ali eram, acho que caberia um
pouco mais de calma, de humanidade mesmo.
Dois outros erros
antes de eu apagar:
O primeiro (e que eu
não concordo de jeito nenhum), alguém pergunta:
- Bisturi? Vai
precisar de bisturi?
- Não. – Alguém
responde, pra meu alívio.
Alívio entre aspas, pois apesar de ser uma cirurgia endoscópica (canudos através da boca), ainda
assim, sofro (e muito), e o pior em minha opinião é a forma, posição em que
deixam minha cabeça e que, por causa disso, me machucam e muito. Não concordo.
Fico pensando como ser possível nunca terem achado que desse jeito é errado e
como machucam o paciente com esse procedimento. Uma pequena alteração já seria
a solução. Eu vejo. Eles não. E o mundo continua e eu me fodo. Paciência. Eu é
que sou o paciente mesmo.
O segundo erro foi
cruel. PQP!! Maiúsculo messsmooo...
A bendita da
anestesia, eu já sabia, é muito doída. Muito mesmo.
Teriam de ministrar
aos poucos. Teriam.
Adivinha.
- Fulano!! Você
soltou tudo de uma vez?! Faz isso não.
E eu grito enquanto
me contorço, enquanto me seguram, enquanto assistem meu sofrer sem nada poderem
fazer, sem nada fazerem.
Em meus pensamentos
eu suplico: - Alguém, por favor, arranque meu braço esquerdo, arranque.
É preferível do que
sentir a dor que eu senti.
Alguém fala:
- Calma. Vai passar.
E eu grito, dessa
vez não aguentei:
- Caral...o!!! – Bem
grande mesmo, bem contorcido, bem suado, sofrido. Quanta dor.
Quanta dor.
Apago.
Sono negro.
Quarenta minutos em
três.
Como eu estava
querendo mesmo registrar tudo isso aqui, durmo mentalizando a vontade de
perguntar as horas quando eu voltar. É o que faço.
Apesar de estar com
a boca, os dentes, a garganta, completamente, machucados e doídos, apesar de
grogue, volto perguntando (para a surpresa dos presentes):
- Quantas horas.
- Dez horas. –
responde a “minha noiva” de touca vermelha.
Quarenta minutos se
passaram.
Se passaram como que
em três, muito rápido.
Um sono diferente,
não revigorante, não descansado, um sono sem sonho, apenas um longo túnel
escuro. Nada mais.
Uma mancha escura,
muito esquisito, sem prazer, diferente. Muito diferente.
A mesma morena que elogiara-me
os peitos é a mesma que agora (apesar de eu dizer que nunca faria depilação), é
a mesma que agora arranca os eletrodos de meus peitos com toda a força, e com
todos os meus pobres fiozinhos de pelos brancos.
- Não quero mais
casar com você, não (rsrs) – penso com meus botões.
Mas que botões? Nem
os tenho. Estou, praticamente, nu.
Nu e cheio de dores.
A morena se oferece
para me ajudar a passar da cama para a maca, para poder ir embora. Deixo não.
(continuo com raiva dela (rsrs). Brincadeira)
E ela me elogia mais
uma vez:
- É macho mesmo.
(elogiando o fato de eu já “refeito” a me passar sozinho)
Leva-me.
Despedimo-nos.
Sofro.
Que dores infelizes.
Mas, no íntimo, a
felicidade de ser experiente.
Eu já sabia que ia
passar por isso. Já tinha preparado meu consciente para exigir meus direitos
(se eu tivesse algum, claro (rsrs)).
Um enfermeiro se
aproxima:
- Como o senhor
está?
- Dor. – respondo.
- Dor? De um a dez.
– pergunta-me ele.
E eu respondo:
- Analgésico.
Graças a Deus, ele
me responde, complacente:
- Espere um pouco.
Ah! E outra coisa:
Quando eu falo de dor, eu só tinha falado da dor nos dentes, na boca e na
garganta (por causa da barbeiragem quanto à sonda), masss..., não esqueçamos a
dor da cirurgia em si. Meu objetivo aqui hoje era, é, e aconteceu, uma cirurgia
(mesmo que pequena) no aparelho digestivo.
Estou aqui agora,
numa espécie de sala de recuperação pós-cirúrgica, antes de ir para o quarto
pernoitar e, somente, amanhã ir embora.
Barriga pra cima,
quieto como falaram para eu ficar, sofrimento à zói (rsrs – gíria carioca
(acho)), agoraaa..., pensa no gato em pé dentro do meu estômago a arranhar-me
de dentro pra fora querendo nascer por baixo de minhas costelas. Pensa numa
dor. Do caramba, mesmo.
Encararia a situação
sem remédios se fosse o jeito. Ainda bem que não foi o caso.
- Que analgésico é
esse? – Perguntei.
Meu temor era quanto
à Novalgina. Pensa num trem ruim! Pode até ter um efeito bom, mas, quando da
aplicação a bendita entra gelada e rasgando (no caso, que era o caso, quando
venosa). Com temor que fosse sofrer mais ainda, perguntei, e ele respondeu:
- Morfina.
Morfina?! Perguntei,
mentalmente, pra mim mesmo. Gostei da notícia. Falei, temendo:
- Aplica devagar,
por favor.
Pra meu alívio, o
enfermeiro foi muito solícito, a droga bastante confortável (na hora da
aplicação – diferentérrima da Novalgina), e de efeito... humm.... que efeito.
Pela enézima vez nesse dia eu perco o domínio do meu corpo. Só que dessa
vez..., gostei.
Eu já sabia (de
história, ou de documentários) que soldados americanos mantêm consigo Morfina
para alívio de dor, caso necessário. Sabia sobre caso de vício. Mas não sabia
quanto ao efeito, nunca os tinha vivido.
Caramba! Como por
encanto as dores foram cessando.
Do jeito que eu
estava (deitado de barriga para cima), meu corpo deixava de ser meu, uma leveza
misturada com um não controle do meu próprio corpo. A cabeça era a parte mais
pesada (não consegui movê-la, mesmo se eu quisesse), o corpo... que corpo? Só
um flutuar. Só um flutuar.
Que sensação!!!
Não quero, não é a
intenção, fazer apologia, não.
Particularmente,
prefiro, muitssimamente, a minha cerveja. Muito mesmo. Mas, foi muito
interessante não mais sofrer e, ao mesmo, tempo viajar.
Uma dúvida me
ocorria quanto aos soldados americanos: Que controle eles teriam, de si mesmos,
caso tivessem de se alto-aplicar aquela droga em combate? Teriam condições de
continuar a lutar, ou tentar fugir, depois daquilo?
Não creio. Não
acredito que alguém consiga qualquer intento senão viajar. Não acredito mesmo.
A dor persistia. O
enfermeiro perguntou-me, novamente, quanto a dor.
Eu respondi
perguntando:
- Pode mais um
pouco?
Ele me olhou
desconfiado (rsrs).
Aplicou.
Só mais um pouco.
Num misto de felicidade
e alívio, agradeci. Agradeci e elogiei-o por sua humanidade, por não ter me deixado
sofrendo.
Fiquei, realmente,
grato.
Grato e feliz.
(rsrs)
Ao contrário da
outra droga de pouco antes (a anestesia), essa não me apagou. Eu estava
consciente (apesar de isso não dizer nadica de nada)
De que adianta
consciência sem vontade (vontade? O que é isso mesmo? (rsrs) De que adianta
consciência sem controle?) Controle para que mesmo? Queria nada disso, não. Não
mesmo. (rsrs)
Quanto à anestesia,
lembro de um sono, de um túnel escuro e de uma luz branca antes de acordar. Não
acho que fosse a luz branca das experiências de quase morte que já ouvi falar,
de onde pessoas dizem ter visto pessoas, dizem ter sentido paz. Não foi isso.
Foi mais como um ponto
branco a separar a jornada escura e o meu despertar. Só vi uma mancha branca
antes de despertar. Antes disso só o breu, a escuridão, um sono escuro num
misto de consciente desacordado. Um sono diferente, muito diferente do sono
normal.
Quanto à Morfina...,
uma viagem.
Enquanto aguardava
maior recuperação para poder ir para o quarto, fiquei deitado de barriga pra
cima. O mundo agora era outro sem agonia, sem correria, sem dor. Parecia flutuar.
Mas, o que mais me
chamou a atenção foi a sensação nos meus olhos e em minha mente.
A mente estava zen.
Zen de tudo, não queria nada, nem um mínimo de esforço que fosse (se quer mover
o pescoço, cabeça). Nada.
Já os olhos... Foi
demais.
Por baixo das
pálpebras fechadas haviam dois céus lilás sem estrelas. Meus olhos, cabeça deitada
com olhos para cima, meus olhos miram os céus como que olhando através de
binóculos, deles saem arcos de fogo vindos de dentro da retina, passando pelo
binóculos, seguindo para o infinito a diminuírem de tamanho enquanto se perdem
pelos céus. Pensa numa sensação de paz, de bem estar. Uma sensação
interessante.
O fato é que agora
eu estava confortável, preparado para encarar o pós-cirúrgico.
Em outros tempos,
sem o devido respeito, sem o devido remédio, ou tratamento, por assim dizer, eu
sofri dores terríveis quando do transporte do centro cirúrgico para o quarto,
mas, dessa vez, a partir desse momento de alívio, não. Foi muito diferente.
Ainda bem.
Em outros tempos até
o relevo do piso, por mais perfeito que fosse, me causavam dores horríveis.
Desta vez, ainda bem, foi bem diferente.
Cheguei ao quarto
depois de percalços mil (tirados de letra). Pra minha sorte respeitaram minha
vontade de não querer sentir dor, deram-me mais analgésicos durante a noite e
venci, com relativo conforto, mais essa etapa de minha vida. Espero que quando
eu tiver de passar por isso de novo (terei de fazer novas cirurgias), espero
ser tratado, pelo menos, mais ou menos, do mesmo jeito. Gosto de sentir dor
não. Na medida do meu possível, espero senti-la o mínimo possível, se tiver de
senti-la.
Achei-me muito
respeitado em minha vontade, na vontade de outros em querer o meu bem. Foi
muito bom e senti-me muito agradecido a Deus por tudo, por todo o respeito que
me tiveram.
Um respeito que
pensei ser bom para qualquer um, a quem eu desejo que tenha, a qualquer um do
mundo caso necessite. Muito legal.
Felicidade maior
seria saber que todos temos, ou teremos, tal tratamento. Espero, muito mesmo,
que essa se torne, cada vez mais, uma realidade a todos nós.
Isso foi ontem.
Hoje tive alta.
Sinto dores, mas,
estou em repouso. Espero superar mais essa logo e logo poder voltar à rotina
normal.
Tudo mexe.
Hoje, antes da alta,
eu estava baqueadão, depois de ter ficado deitado o tempo todo, com a mão
esquerda aberta o tempo todo por causa do que eles chamam de acesso, também
estranhei o Sol. Estranhei o dia, a luz, o andar. Incrível.
Pouco tempo, mas, a
gente se modifica, o corpo se modifica, nossa visão (forma de como vemos – não
somente os olhos) se modifica.
Com tudo isso que
falei, apenas tentei mostrar realidades, formas de ver ou não, vida que vivida
por cada um em qualquer lugar, de qualquer jeito, apenas há de ser a mais bem
vivida possível. Que enxerguemos o nosso melhor e o melhor pra nós.
E que sejamos cada
vez mais felizes, independente do mundo que estejamos.
Sempre.
Com carinho.
Jeff
http://letras.mus.br/fagner/255575/
(Oração de São Francisco – Fagner)
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